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Justiça aplica perspectiva de gênero e teoria da aparência e majora alimentos; decisão reconhece cuidado materno
Em São Paulo, uma mãe obteve na Justiça a majoração da pensão alimentícia paga pelo pai de sua filha de um para dois salários-mínimos, com base no Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça – CNJ e na Teoria da Aparência. Ao analisar o caso, a 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional do Tatuapé considerou o padrão de vida elevado do genitor, incompatível com a alegação de dificuldades financeiras, e reconheceu o trabalho de cuidado não remunerado exercido pela genitora no sustento da criança.
A ação foi ajuizada em favor de uma criança, hoje com 7 anos, representada pela mãe. Na ação, a genitora alegou que atualmente está desempregada e arca exclusivamente com as despesas da filha desde o nascimento, sem receber o devido auxílio material do genitor. Também argumentou que o pai da criança é empresário bem-sucedido no ramo de tatuagem, com prestígio no mercado em que atua.
O genitor contestou a ação sob alegação de dificuldades financeiras decorrentes da pandemia e requereu a redução do valor para meio salário-mínimo.
A genitora, por sua vez, impugnou o pedido de gratuidade processual formulado pelo requerido. Afirmou que o requerido apresenta um padrão de vida elevado e que "o fato de não saber gerir o seu negócio, acumulando inúmeras dívidas, não tendo responsabilidade, e usufruindo de uma vida acima dos padrões, não o isenta dos seus deveres legais como pai".
A decisão da 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional do Tatuapé cita a doutrina de Maria Berenice Dias, vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões – IBDFAM, Rolf Madaleno, diretor nacional do Instituto, e Eduardo Cambi, membro do Instituto.
A magistrada responsável pelo caso destacou os sinais externos de riqueza do alimentante, como viagens, festas e experiências gastronômicas, contrastando com sua alegada impossibilidade financeira. Na decisão, também foram citadas condutas de ocultação patrimonial, já que o pai direcionava pagamentos de clientes para a conta bancária de um irmão.
Proporcionalidade
O advogado Bruno Freitas, membro do IBDFAM, atuou no caso. Segundo ele, um dos aspectos mais relevantes da decisão é a valoração expressa do trabalho doméstico não remunerado da mãe no cuidado da criança como fator a ser considerado na proporcionalidade dos alimentos.
Bruno Freitas afirma que o trinômio necessidade, possibilidade e proporcionalidade permanece como norte fundamental, mas sua aplicação na atualidade precisa incorporar uma leitura contemporânea das relações familiares. “A proporcionalidade, em especial, não pode ser compreendida apenas como divisão aritmética de despesas, ignorando as desigualdades estruturais que marcam a distribuição do trabalho de cuidado.”
“Esta sentença demonstra que o trinômio, quando interpretado à luz do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, permite enxergar realidades antes invisibilizadas. A sobrecarga da mulher que cuida, e que por isso tem menos tempo para qualificação profissional e oportunidades no mercado de trabalho, precisa ser computada na equação”, observa o advogado.
Segundo ele, não se trata de abandonar o trinômio, “mas de preenchê-lo com o conteúdo que a Constituição Federal exige: igualdade substancial e dignidade”.
Trabalho invisível
O advogado entende o reconhecimento do trabalho invisível como um avanço na jurisprudência sobre alimentos.
“Historicamente, a fixação de alimentos considerou apenas os aportes financeiros diretos, desconsiderando que o genitor guardião, na imensa maioria dos casos a mãe, já contribui de forma substancial por meio do trabalho de cuidado: preparo de alimentação, acompanhamento escolar, higiene, saúde, organização da rotina e suporte emocional. Esse trabalho, embora não remunerado, possui valor econômico e consome tempo que poderia ser dedicado ao desenvolvimento profissional”, pondera.
De acordo com Bruno Freitas, a sentença, ao citar expressamente a doutrina de Maria Berenice Dias, reconhece que contabilizar esse trabalho é uma forma de promover a equidade de gênero, dar dignidade à maternidade e efetivar a parentalidade responsável. “Trata-se de um avanço importante porque torna visível o que sempre esteve presente, mas era sistematicamente ignorado na quantificação dos alimentos.”
Responsabilidade
Na visão do advogado, a decisão oferece fundamentação robusta para que outros magistrados incorporem a perspectiva de gênero na fixação de alimentos, superando a visão meramente contábil que ainda predomina. “No plano social, comunica que o Judiciário reconhece e valoriza o trabalho de cuidado, historicamente relegado à invisibilidade.”
“Simbolicamente, a sentença confronta a lógica perversa em que o genitor ausente alega pobreza enquanto ostenta riqueza, e a genitora presente suporta sozinha o peso material e imaterial da criação. Ao aplicar a teoria da aparência e identificar a ocultação patrimonial, a magistrada deixa claro que o Judiciário não será cúmplice de estratégias para frustrar o dever alimentar”, avalia Bruno.
Ainda conforme o advogado, a decisão reafirma que a corresponsabilidade parental não é apenas um princípio retórico, mas uma exigência concreta que deve se refletir na divisão justa dos encargos, financeiros e de cuidado, necessários ao desenvolvimento integral da criança.
Por Débora Anunciação
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